segunda-feira, 26 de setembro de 2011

resiguinação

era uma quinta-feira, completavamos sete anos de casados.
como sempre você havia feito a torta de chocolate que comeriamos após a troca de presentes.
por esse motivo, resolvi não lhe contar que havia sido demitido.
enquanto me barbeava notei uma ferida em minha fronte.
mas por ser o nosso aniversário, fingi não tê-la visto.
"como foi no trabalho?"
"tudo bem!"
eu te dei um anel que parecia um brilhante, você me deu uma gravata que fingia ser de seda.
ah! antes que eu me esqueça, foi durante o jantar que percebi uma ferida, igual a minha, em seu pescoço.
mas era nosso aniversário de casamento...
"é lindo!"
"é linda!"
"te amo..."
"amor..."
no dia seguinte sai cedo, fingi ir trabalhar, mas passei o dia sentado em uma sarjeta olhando as pessoas a passar, tentando imaginar para onde iam, ou quantas como eu, fingiam ir a algum lugar.
no banho dessa manhã notei outras feridas pelo meu corpo.
foi um longo dia, como todos de minha vida.
pensei em tentar acreditar em deus...
mas não sabia o que era preciso para isso.
talvez, baste apenas dizer: "eu acredito!"
e assim as pessoas pensaríam que de fato acreditam.
senti-me assustado.
quando voltei para casa, tinha febre, te beijei e notei que teu rosto também ardia.
fingi não perceber, você fingia sentir-se bem.
terminamos o dia fingindo assistir televisão.
"como foi no trabalho?"
"bem."
por mais alguns dias fingi ir trabalhar.
quando, por fim, o dinheiro acabou, confessei haver perdido o emprego.
você fingiu estar tudo bem e disse que logo encontraria um melhor.
eu tentei fingir que acreditava, você fingiu um abraço.
"querido!.."
"querida."
a cada dia, de forma violenta, pioravamos!
nossas chagas brotavam da pouca carne sã que nos revestia.
mesmo assim você fingia não sentir dor e eu não sofrer.
"esse detergente que compramos ressecou minha mão. não sei por que peguei o odd..."
"vá descansar um pouco querida. deixa que eu seco a louça."
você disse algo sobre procurar um médico.
eu fingi não ter ouvido, você fingiu nada haver dito.
ao aproximar-se, a morte tornava-nos cada vez mais semelhante.
você fingia não ver o meu sofrimento, eu fingi um sorriso.
"querido."
"querida..."
na noite de ontem, você tentou fingir não estar morrendo, mas hoje amanheci sozinho.
a meu lado havia algo que fingia ser você.
quando cerrei os teus olhos, não pude mais te reconhecer.
eu perdi a capacidade de fingir.
agora, não sofro tanto.
procuro aceitar melhor os fatos.
não sei por que um sonho que tive quando ainda era criança ocupa meus pensamentos...
eu estava num circo abandonado e todas as pessoas do mundo eram vampiros.
meus parentes, meus amigos, meus amores...
todos vampiros!
ai eu me lembro daquela velha frase: "aquilo que não é corpo não é parte do universo...
e, como o universso é tudo, aquilo que não é corpo não é nada - nem lugar nenhum."

augusto

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